O que é Construtivismo?
O universo sempre foi o que é hoje? Os mais antigos acreditavam, e muitos ainda acreditam, que o universo foi criado por Deus tal qual é hoje. Segundo essa crença, a Terra é o centro do universo; mas a partir do século XVI tal concepção foi-se desmoronando, com a afirmação de que o Sol era o centro. Hoje, “a Terra é uma pedrinha que órbita uma estrela pequena que fica na periferia de uma galáxia sem importância à deriva em um universo que se expande” (Folha de S. Paulo, 10/05/1992).
Esse desmoronamento ocorre em várias áreas do conhecimento humano. DARWIN, no século XVIII, na Biologia, tira do homem o título de filho de Deus e faz dele um descendente dos símios. FREUD, no início deste século, na Psicanálise, afirma que o homem nem ao menos é o dono de sua consciência e de seus atos, pois estes são determinados, em larga escala, pelo inconsciente, que é um “sistema dinâmico em permanente atividade”, profundamente enraizado nas relações sociais.
Sabemos, hoje, que o universo é muito maior do que se imaginava, que não é estático e, mais, que desde o seu início, há quinze bilhões de anos, está em expansão a velocidades espantosas. A física atômica já nos passara, no início deste século, a idéia de movimentos à velocidade da luz, no microcosmo. Numa palavra, todo o universo, nos níveis micro e macro, está em movimento. Se ele está em movimento, está-se constituindo, está-se construindo. Ou se destruindo?
No plano da vida acontece a mesma coisa. A vida apareceu na Terra há mais de três bilhões de anos. Pensava-se que Deus criara as espécies e que elas se conservavam tal e qual. Sabe-se, hoje, que as espécies que vivem atualmente na Terra pouco tem a ver com as que viveram há 650 milhões de anos ou há 65 milhões de anos; mas as que vivem hoje, inclusive humana, são herdeiras das que viveram nessas épocas-herança do que sobrou de grandes catástrofes, como, por exemplo, chuva de meteoritos.
Essas concepções que as ciências foram construindo refletem-se na Filosofia e na Sociologia. HEGEL e MARX expressam esse movimento pela dialética: dialética no pensamento e dialética na realidade objetiva. O princípio da transformação está na essência do próprio ser. Neste século, já sob a influência da física relativista e da mecânica quântica, PIAGET faz refletir essas idéias na Psicologia, na Filosofia e, mais especificamente, na Epistemologia, construindo uma nova ciência a que chamou de Epistemologia Genética.
PIAGET vai mostrar como o homem, logo que nasce, apesar de trazer uma fascinante bagagem hereditária que remonta a milhões de anos de evolução, não consegue emitir a mais simples operação de pensamento ou o mais elementar ato simbólico. Vai mostrar ainda que o meio social, por mais que sintetize milhares de anos de civilização, não consegue ensinar a esse recém-nascido o mais elementar conhecimento objetivo. Isto é, o sujeito humano é um projeto a ser construído; o objeto é, também, um projeto a ser construído. Sujeito e objeto não têm existência prévia, a priori: eles se constituem mutuamente, na interação. Eles se constroem. Como?
O sujeito age sobre o objeto, assimilando-o: essa ação assimiladora transforma o objeto. O objeto, ao ser assimilado, resiste aos instrumentos de assimilação de que o sujeito dispõe no momento. Por isso, o sujeito reage refazendo esses instrumentos ou construindo novos instrumentos, mais poderosos, com os quais se torna capaz de assimilar, isto é, de transformar objetos cada vez mais complexos. Essas transformações dos instrumentos de assimilação constituem a ação acomodadora. Conhecer é transformar o objeto e transformar a si mesmo. (O processo educacional que nada transforma está negando a si mesmo.) O conhecimento não nasce com o indivíduo, nem é dado pelo meio social. O sujeito constrói seu conhecimento na interação com o meio tanto físico como social.
Essa construção depende, portanto, das condições do sujeito – indivíduo sadio, bem-alimentado, sem deficiências neurológicas etc. – e das condições do meio – na favela é extremamente mais difícil construir conhecimentos, e progredir nessas construções, do que nas classes média e alta.
Vê-se, pois, que, como MARX derrubou a idéia de uma sociedade constituída por estratos, ricos e pobres, que existem desde toda a eternidade, e criou a idéia de uma sociedade que se produz e reproduz, estabelecendo um sistema de produção que a perpetua, PIAGET derruba a idéia de um universo de conhecimento dado, seja na bagagem hereditária (apriorismo), seja no meio (empirismo) físico ou social. Criou a idéia de conhecimento-construção, expressando, nessa área específica, o movimento do pensamento humano em cada indivíduo particular, e apontou como isso se daria na Humanidade como um todo. No entanto, assim como o marxismo atual exerce uma crítica sobre sua conceituação de “classe social”, na medida em que “estudos concretos desvendaram formas originais de práticas coletivas”, e na medida em que se toma consciência de que a classe social é alterada pelo modo mesmo como é vivida, a Epistemologia Genética exerce, também, sua autocrítica no sentido de ampliar a compreensão do que significa o “objeto”, se entendido como o mundo das relações sociais, no sentido do conflito sociocognitivo ou das representações sociais da inteligência, pois a vida social não pode continuar a ser entendida simplesmente como “coordenação de operações individuais”.
Construtivismo significa isto: a ideia de que nada nega, a rigor, está pronto, acabado, e de que, especificamente, o conhecimento não é dado, em nenhuma instância, como algo terminado. Ele se constitui pela interação do Indivíduo com o meio físico e social, com o simbolismo humano, com o mundo das relações sociais; e se constitui por força de sua ação e não por qualquer dotação prévia, na bagagem hereditária ou no meio, de tal modo que podemos afirmar que antes da ação não há psiquismo nem consciência e, muito menos, pensamento.
Construtivismo é, portanto uma idéia; melhor, uma teoria, um modo de ser do conhecimento ou um movimento do pensamento que emerge do avanço das ciências e da Filosofia dos últimos séculos. Uma teoria que nos permite interpretar o mundo em que vivemos. No caso de PIAGET, o mundo do conhecimento: sua gênese e seu desenvolvimento. Construtivismo não é uma prática ou um método, não é uma técnica de ensino nem uma forma de aprendizagem; não é um projeto escolar; é, sim, uma teoria que permite (re)interpretar todas essas coisas, jogando-nos para dentro do movimento da História – da Humanidade e do Universo. Não se pode esquecer que, em PIAGET, aprendizagem só tem sentido na medida em que coincide com p processo de desenvolvimento do conhecimento, com o movimento das estruturas da consciência.
Entendemos que construtivismo na Educação poderá ser a forma teórica ampla que reúna as várias tendências atuais do pensamento educacional que teima (ideologia) em continuar essa forma particular de transmissão que é a Escola, que consiste em fazer repetir, recitar, aprender, ensinar o que já está pronto, em vez de agir, operar, criar, construir a partir da realidade vivida por alunos e professores, isto é, pela sociedade – a próxima e, aos poucos, as distantes. A Educação deve ser um processo de construção de conhecimento ao qual acorrem, em condição de complementaridade, por uma lado, os alunos e professores, e, por outro, os problemas sociais atuais e o conhecimento já construído (“acervo cultural da Humanidade”).
O professor afirma que o conhecimento é algo que entra pelos sentidos – algo que vem de fora da pessoa, portanto – e se instala no indivíduo, independentemente de sua vontade, e é sentido por esse indivíduo como uma “vivência”. A pessoa, o indivíduo ou, de modo geral, o sujeito não tem mérito nisso, é passivo. O objeto, isto é, o conjunto de tudo o que é não-sujeito, pouco ou nada tem a ver com isso. Esse modo de entender o aparecimento, a gênese do conhecimento num indivíduo, é chamado de empirismo. Podemos dizer que empiristas são aqueles que pensam que o conhecimento acontece porque nós vemos, ouvimos, tateamos etc., e não porque agimos. O conhecimento será, então, sensível no começo, abstrato depois. Na Psicologia, é a teoria da associação entre estímulo e resposta que constitui a explicação própria do empirismo.
Se perguntarmos ao professor sobre o conhecimento, desautorizando a concepção empirista, como acontece quando se pergunta por que um macaco submetido à estimulação da linguagem humana não aprende a falar e a pensar formalmente, o professor muda seu paradigma de teoria de conhecimento. Passa a negar, inconscientemente, seu empirismo, afirmando que o indivíduo conhece porque já tem em si o conhecimento. A concepção de conhecimento que acredita que se conhece porque já se traz algo, ou inato ou programado na bagagem hereditária, para amadurecer mais tarde, em etapas previstas, chama-se apriorismo.
Podemos dizer que os aprioristas são todos aqueles que pensam que o conhecimento acontece em cada indivíduo porque ele traz já, em seu sistema nervoso, o programa pronto. O mundo das coisas ou dos objetos tem função apenas subsidiária: abastece, com conteúdo, as formas existentes a priori (determinadas previamente). Como se vê, o apriorismo opõe-se ao empirismo. Mas o faz apenas neste ponto, porque também ele acaba propondo uma visão passiva de conhecimento, pois, de uma ou de outra maneira, suas condições prévias já estão todas determinadas, independentemente da atividade do indivíduo.
Raramente o professor consegue romper o vaivém entre empirismo e apriorismo: se nota que a explicação empirista não convence, lança mão de argumentos aprioristas. E volta, na primeira oportunidade, ao empirismo, se o mesmo acontecer com a explicação apriorista. Surpreendentemente, a ruptura acontece se o professor pára a sua prática e reflete sobre ela. O que acontece por força dessa reflexão? O professor toma consciência de que a extensão da estrutura do seu pensar é muito limitada, de que ele precisa ampliar essa estrutura ou, até, construir uma nova.
Ao apiorar-se de sua prática, ele constrói –ou reconstrói – as estruturas do seu pensar, ampliando sua capacidade, simultaneamente, em compreensão e em extensão. Essa construção é possível na medida em que ele tem a prática, a ação própria; e, também, na medida em que ele se apropria de teoria(s) suficientemente critica(s) para dar conta das qualidades e dos limites de sua prática. Essas duas condições são absolutamente indispensáveis para o avanço do conhecimento, para a ruptura com o senso comum na explicação do conhecimento. Deste ponto de vista, o conhecimento é uma construção. O sujeito age, espontaneamente – isto é, independentemente do ensino mas não independentemente dos estímulos sociais -, com os esquemas ou estruturas que já tem, sobre o meio físico ou social.
O docente precisa refletir, primeiramente, sobre a prática pedagógica da qual é sujeito. Somente então apropriar-se-á de teoria capaz de desmontar a prática conservadora e apontar para as construções futuras.
A superação do apriorismo e, sobretudo, do empirismo é condição necessária, embora não suficiente, de avanços apreciáveis e duradouros na prática docente.
O movimento próprio do processo de construção do conhecimento deve impregnar a sala de aula, em particular, e o sistema educacional, em geral. A sala de aula deve ser inserida na História e no espaço social. O compromisso da Escola deve ser o de construir o novo e enão o de repetir, interminavelmente, o antigo.
Construtivismo é uma nova forma de conceber o conhecimento e, por sequência, um novo modo de ver o universo, a vida e o mundo das relações sociais.
Referências Bibliográficas
BECKER, Fernando. Da ação à operação: o caminho da aprendizagem; Jean Piaget e Paulo Freire. Tese (Doutorado) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 1984. (no prelo) Saber ou ignorância: Piaget e questão do conhecimento na escola pública. Psicologia –USP, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 77-87, 1990.
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